O começo do fim
Por Matheus A. Leitzke
Tangências, de Miguelanxo Prado, é mais que uma mera narrativa gráfica, é um mergulho na complexidade das relações humanas, e sua leitura nos oferece um prisma singular para refletir sobre este tema. A obra, permeada por uma sutil melancolia e beleza etérea, torna-se um estudo sobre a memória, o tempo e as tangentes que tanto aproximam quanto separam as pessoas.
O álbum reúne oito
contos que exploram relacionamentos amorosos em suas mais variadas
formas. De maneira geral, são histórias sobre despedidas, com a
indagação central sendo: "O que faz com que duas vidas, que em
um momento se juntaram com grande intensidade, voltem a separar seus caminhos?"
A essência das
tramas reside na recordação: os personagens revisitados na memória não são
apenas figuras do passado, mas projeções de um eu que se foi. O fim das
relações, nesse contexto, não se apresenta como um ponto final abrupto, mas uma
desintegração lenta de laços que outrora pareciam indissolúveis.
Miguelanxo
capta com maestria essa atmosfera de perda e ressignificação, em que as paisagens
oníricas e simultaneamente ordinárias funcionam como metáforas para a
fragilidade da conexão. O amor, aqui, não é um conceito fixo e imutável, mas
uma tapeçaria de momentos, alguns desfiados pelo
tempo, outros intensamente coloridos na retrospectiva e
quase todos mergulhados na melancolia. A jornada de cada personagem é uma
busca por sentido na ausência, um esforço para encontrar a beleza na cicatriz
deixada pela partida.
A
profundidade, no entanto, transcende a mera descrição de relacionamentos e suas
dissoluções. A obra se eleva a uma meditação sobre a natureza da memória e da
identidade. O autor retrata a recordação não como um registro fiel do passado,
mas como uma reconstrução subjetiva e contínua, ecoando as ideias de Henri
Bergson. Para o filósofo, a memória é uma faculdade que nos permite reter o
passado não como um arquivo estático, mas como uma força viva que molda o
presente e projeta o futuro. Em cada conto de Prado, os personagens não apenas
se lembram, eles ressemantizam seus
encontros, filtrando-os pela lente da saudade e do luto, e revelando
não somente o que foram as relações e mais aquilo em que se transformaram na
narrativa pessoal de cada um.
A pergunta
central de Prado – "O que faz com que duas vidas, que em um momento
se juntaram com grande intensidade, voltem a separar seus caminhos?" –
nos convida a confrontar a fragilidade inerente às nossas conexões.
A metáfora
da tangência, que dá nome à obra, é sua mais potente contribuição para
essa pergunta. Uma tangente, na geometria, é uma linha que toca uma curva em um
único ponto, sem a atravessar. Prado estende essa metáfora para o plano das
relações, sugerindo que muitas de nossas conexões mais intensas não são fusões
completas, mas toques breves e significativos. As vidas se aproximam com grande
ímpeto, compartilham um instante de beleza e, em seguida, se separam, cada uma
seguindo seu próprio e inevitável caminho. A melancolia sutil que permeia o
álbum não é uma fraqueza, mas o reconhecimento de uma verdade: amor e conexão são, muitas vezes, efêmeros, e a
beleza reside precisamente nessa efemeridade. O fim da relação não é um
fracasso, mas uma condição intrínseca à sua natureza. A aceitação dessa
realidade, embora dolorosa, é a chave para encontrar o sentido na ausência,
para valorizar o toque que, embora fugaz, deixa uma marca indelével na memória.
Prado, com sua
arte, reforça esse conceito. A transição entre o realismo e o onírico ilustra a
fluidez da memória e a subjetividade das emoções. Suas cores matizam sentimentos,
seus traços refletem as nuances da alma.
A leitura de Tangências é, assim, uma experiência que nos convida a revisitar nossos próprios fantasmas, a confrontar nossas despedidas e a reconhecer que as mais belas histórias são, muitas vezes, as que se dissolvem lentamente, deixando em seu rastro não um ponto final, mas uma melodia de lembranças que ecoam para sempre em nosso interior.
"O que faz com que duas vidas, que em um momento se juntaram com grande intensidade, voltem a separar seus caminhos?"
ResponderExcluira análise do texto me fez querer engolir as páginas desse livro com anseio até o fim! palavras definitivas, termos coesos e expressões misteriosas.
que a memória e o tempo possa cuidar de todo o cuidado que vocês colocaram aqui!
um beijo da sua maior fã :)
Matheus, o texto é delicado e sutil, ao mesmo tempo avassalador. Sentimos, durante toda a leitura, a doçura e a melancolia. Estou animada para as próximas publicações :)
ResponderExcluirO amor quase como um encontro de duas linhas que se tocam por um instante antes de seguirem caminhos distintos. Isso ressoou muito comigo, pois embora seja doloroso, carrega uma intensidade única. Talvez justamente por ser passageiro, o amor deixe marcas tão profundas e inesquecíveis.
ResponderExcluirExtremamente feliz por ver sua expressão do tema, amigo. Sinto o teu coração e a tua alma!
Texto conciso e profundo , prende o leitor e aguça a vontade de ler o livro . Uma análise suave sobre as relações , que apesar de serem breves , são tão marcantes .
ResponderExcluirLindo texto , continue .
Que análise sutil e melancólica. É lindo ver a sua abordagem sobre as fragilidades dos laços humanos com tanta delicadeza. O teu olhar revela não só uma compreensão literária, mas uma rara percepção da vida.
ResponderExcluirAmo a sua mente e a sua visão sobre tudo. Parabéns por isso!
A leitura de um texto capaz de traduzir um universo cromático&imagético com tanta sutileza e precisão é sempre prazerosa. A sua generosidade diante da obra de Miguelanxo e do leitor é o que permite aquilo que, sem dúvidas, aconteceu com todos nós que lemos sua resenha: a identificação dolorosa, embora bonita, nostálgica, doce e melancólica com o sentimento intrínseco ao livro. Fico ansiosa pra ler as próximas!
ResponderExcluirUma análise de texto exemplar, que nós direcionar a refletir, pensar e querer ler os próximo texto que certamente virão, fico na expectativa aguardando nova interpretação sem pressão :)
ResponderExcluirFiquei com vontade de ler!
ResponderExcluirTe indico “Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos”, de Zidrou…converge com essa obra, sinto que visita muitos fantasmas também.
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